#34 – Calle Junín – La Paz – Bolívia
Uma aula inesquecível de História da Arte
No cartaz ao lado do hostel estava escrito: “Pollo Asado”, como é tão recorrente em um cartaz na Bolívia…
Após dois dias explorando o Salar do Uyuni, o precioso deserto de sal andino, chego exausto no hostel da pequena Uyuni, em uma tarde de terça-feira.
No Norte do hemisfério, Steve Jobs acabava de aperfeiçoar a primeira geração de smartphones da Apple, o iPhone 3G.
Como a mais avançada tecnologia disponível no meu celular daquela época era o jogo da cobrinha, resolvi deixá-lo em casa, no Brasil.
Naquela tarde de terça, coloquei meus pertences em cima da cama, em um quarto compartilhado e fui até um computador antigo e lento, que estava ao lado, verificar se algum anfitrião de La Paz tinha contestado meus pedidos de hospedagem (request) no Couchsurfing.
Couchsurfing é uma vibrante comunidade de pessoas ao redor do mundo, que buscam ao mesmo tempo uma forma de hospedagem gratuita (um sofá) e muito mais importante, uma forma de compartilhamento e intercâmbio de culturas e experiências entre locais e viajantes.
O projeto desvirtuou um pouco dos seus princípios norteadores iniciais, mas continua sendo incrível.
Tinha enviado dois pedidos…
(É uma prática comum entre os viajantes, o envio de três a quatro pedidos para um mesmo lugar, visando aumentar as chances de se conseguir um sofá e um guia 100% local)
O meu primeiro pedido foi para a senhorita Yoshi.
O perfil da Yoshi despertou minha atenção quando me dei conta de que ela inseriu uma frase camuflada que deveria constar obrigatoriamente no request.
“Learn Spanish with Yoshi and save the money for beer”.
O que acontece é que muitos “anjinhos” elaboram apenas uma mensagem simples e utilizam do recurso Ctrl + C – Ctrl + V para enviar a mesma mensagem para vários anfitriões, na esperança de conseguir um lugar para não pagar hospedagem.
Quem está do outro lado da tela do computador quer receber uma mensagem personalizada e mais importante ainda, ter a certeza de que o viajante leu o seu perfil completo e conseguiu se conectar verdadeiramente com o dono(a) da casa (ou do sofá).
Eu também utilizo deste mesmo recurso e peço carinhosamente para que, se você me enviar um pedido, você deve fazer o request colocando a palavra “sorvete” na solicitação.
(Apenas para se ter uma noção, durante a Copa do Mundo de 2014, das 21 mensagens de pedidos para surfar no meu sofá, em apenas 6, a palavra sorvete estava inserida).
Fato é que a senhorita Yoshi era o meu plano B.
O plano A, na verdade, acabou sendo o meu segundo pedido, para um tipo chamado Salva (provavelmente de Salvador).
Salva era um peruano que vivia na Bolívia…
(Caramba! Isso encaixou perfeitamente na canção famosa do Legião e que você provavelmente passou toda a adolescência tentando decorar a letra para fazer bonito naquela roda de violão, longe dos pais e muito perto das drogas “lícitas”…)
Salva era um sujeito viajado e que tinha se mudado para La Paz para montar (juntamente com um sócio boliviano) uma pequena empresa de esportes de aventura.
O carro-chefe da empresa era o conhecido passeio de bike pela “estrada mais perigosa do mundo” ( 66 km a 4.700 m de altitude pela “estrada da morte” ou como eles preferem chamar: “Camino a los Yungas”).
Como pretendia fazer esse passeio de bike e também escalar uma montanha nas cercanias da capital boliviana, Salva poderia me guarnecer com as melhores dicas práticas de um local.
De volta à tela do computador antigo e lento, vejo que tenho exatamente duas mensagens não lidas…
Sinto que meu coração assume outro ritmo…
Cruzo os dedos e faço um pensamento positivo na expectativa de encontrar boas notícias…
Vou primeiro na mensagem da Senhorita Yoshi (como quem deixa o melhor para o final)…
A jovem fica encantada com o meu pedido, mas lamentavelmente me informa, que não poderá me hospedar em razão de uma manutenção preventiva que será realizada na sua casa, mas garante que estará livre para tomar um sorvete comigo e também para um passeio até o mirante mais alto de La Paz, na sexta-feira, no período vespertino.
Hummm… quiçá um empate jogando dentro de casa…
Pensei em buscar um chá de coca na recepção do hostel para minimizar a minha apreensão e postergar por mais alguns segundos aquele estado, antes de criar coragem e ler a mensagem do Salva.
Com o coração assumindo uma nova cadência, ainda mais acelerada, finalmente clico na mensagem do peruano que vivia na Bolívia e me deparo com a seguinte mensagem:
“Olá Misa, infelizmente não vai dar para te receber aqui em casa porque aconteceu um lío (uma grande confusão, uma merda, na verdade)…
Um turista belga foi inventar de fazer gracinha e acabou caindo de um despenhadeiro, com bicicleta e tudo, e não está bem…
Provavelmente quando você estiver lendo essa mensagem, já estarei bastante ocupado tomando as devidas providências de seguro, hospital e todas as outras coisas…
Lo siento, de verdade!
Pasarlo bien!”
A pessoa que eu acreditara ser o Salvador da minha trip, o meu plano A em La Paz, não me salvou, mas fez muito mais do que isso com o maluco belga e apenas pedi a Deus para que abençoasse e que tudo corresse bem para todos…
Os passos seguintes foram: reservar um hostel em La Paz, ducha, escovar os dentes e cama…
Na manhã de quarta-feira, comprei minha passagem até Oruro (cidade conhecida pelo carnaval boliviano) e depois de uma longa espera, comprei (por um preço de banana na feira) a segunda pernada da viagem até o meu destino final, La Paz.
Depois de um dia longo de estrada, entre llamas, alpacas, cholas e sucessivos bombardeios de crianças de 5 anos (ou menos) oferecendo de frango assado a gomas de mascar, o velho bus finalmente chegou no Terminal de Buses Lapaz.
Enquanto esperava sacar meu mochilão do ônibus notei alguns brazucas partindo para Cochabamba…
Entrei em um táxi amarelo e pedi ao gentil condutor do veículo, que me levasse até ao hostel Bash and Crash.
Tripulação, foi uma das melhores escolhas…
O hostel era, na verdade, uma espécie de Party Hostel, como os análogos que você encontra em Amsterdam, São Petersburgo ou Munique.
A mulher que estava na recepção conferiu minha reserva e prontamente me conduziu até a minha habitação.
Os quartos ostentavam nomes legais e engraçados…
Quando ela abriu a porta de um quarto chamado: The Smurfs e começou a falar sobre coisas corriqueiras do tipo: o horário do café da manhã é… blá, blá, blá… apenas notei que o quarto era privado e sem escutar mais nada do que ela estava dizendo, perguntei se seria possível me mudar para o quarto vizinho.
Ela retrucou: “Mas o quarto ao lado é igualzinho a este. Não há nenhuma diferença”!
Então eu disse: “ É apenas porque eu sou um grande fã do Poderoso Chefão e o quarto ao lado leva o nome de “The Corleone”.
Pelo que ela grunhiu algo pra dentro, como: “arghh… esses meninos são todos uns idiotas…”
Acompanhei a senhorita novamente até a recepção para pegar as chaves da distinta habitação “The Corleone”…
Antes de fazer a troca das chaves, ela me diz que está com um grupo de amigos e com o objetivo de ir subindo o Continente até chegar em Barranquilla, na Colômbia.
Eram todos argentinos da cidade de Rosário (detalhe importante aqui: não eram da capital Buenos Aires e isso faz diferença!)
No total, duas mulheres e três homens e como sabiam inglês bastante bem, a estratégia era a seguinte:
Trabalhavam em hostels e albergues em troca de hospedagem e revezavam os turnos entre eles…
Para comprar comida e demais itens de sobrevivência, faziam umas miçangas no horário de descanso.
Porém, a maior fonte de renda do grupo era uma espécie de brigadeiro e alfajor que eles faziam no quarto do hostel e vendiam pelas ruas em dias de movimentação urbana.
O público-alvo dos hermanos: todas aquelas pessoas que começam uma dieta (sem sal, sem açúcar, sem glúten, sem vida…) na segunda-feira…
Você pode usar o seu raciocínio e inferir que isto também abarca, todas aquelas pessoas (com boas intenções) que lotam as academias em janeiro, mas que desaparecem (como músculos que se atrofiam) dois meses depois…
Vendiam os docinhos como se fossem os melhores de todos os tempos e para arrematar a venda e fisgar os nobres clientes, davam a maior ênfase possível, na deliciosa cobertura de Dulce de Leche Argentino, simplesmente o melhor (segundo eles)…
Eram do tipo “buena onda”…
É com pesar que informo que a amable senhorita de Rosário equivocara-se, pois o quarto “The Corleone” não era exatamente igual ao “The Smurfs”.
No aposento em homenagem à Máfia Siciliana, havia uma réplica de uma tela bastante importante…
O quadro em questão, representava o nascer da manhã em algum porto ou estaleiro da Europa…
Observei a tela por algum tempo, tentando lembrar de quem seria aquela obra tão mencionada nos livros de literatura e arte da época do Ensino Médio…
Pensei que poderia ser um Van Gogh ou Monet…
Cool… Até aí tudo certo…
Como estava exausto, pensei em uma ducha e ir direto para a cama, mas antes de entrar em uma roupa velha, que me servia muito bem como pijama, resolvi conhecer a parte do bar do hostel.
Fiquei encantado com a decoração do ambiente…
Sala de jogos e as paredes decoradas com as melhores capas de vinil de um tempo em que as músicas eram de qualidade…
A pessoa que estava cuidando do bar era do grupo de Rosário e a senhorita que não compreendeu minha preferência pelo quarto “The Corleone”, fez questão de me apresentar a todos aqueles hippies viajantes…
Para me enturmar e trocar algumas ideias, pedi uma Paceña (uma espécie de skol/antarctica daquela capital boliviana)…
Tudo fluiu muito bem e em conversas descontraídas…
Fiquei encantado com aqueles malucos, mas antes de descansar, resolvi mandar mensagem pra Yoshi, para avisar que tinha chegado na cidade de La Paz.
Quando entro na minha caixa de mensagens, encontro uma surpresa…
Eu que já estava quase dormindo, volto a ficar aceso…
Deixo a tela do computador aberta e vou correndo buscar mais uma paceña…
A paceña me serviu da mesma forma que um óculos de grau, para vislumbrar com precisão, aquelas letras em Castellano que refletiam na tela do computador, a seguinte mensagem…
“Hola Misa! Tudo bem?
Olha, estava dando uma olhada aqui na comunidade e vi que o seu pedido de Couch estava público…
Você já encontrou algum anfitrião aqui em La Paz? Você fica até que dia aqui?
Eu acabei de chegar de férias e vou ficar na casa dos meus pais por uns dias, e se você quiser, há quarto sobrando pra você aqui.
Por favor, me escreva quando chegar.
Sonya”
Rapidamente, entrei no perfil desta tal Sonya hospitaleira…
Havia apenas uma foto e não era do seu rosto…
A fotografia retratava uma montanha coberta de neve em algum lugar remoto do mundo…
E isso não ajudou…
Ajudou menos ainda, o perfil totalmente incompleto, desta jovem hospitaleira e misteriosa…
Contestei a mensagem dizendo que já tinha fechado um hostel, mas que receberia, de bom grado, algumas dicas locais ou até mesmo um passeio pelas estreitas calles de La Paz…
Antes de cair em sono profundo, perguntas vinham como uma avalanche furiosa…
“Quem seria aquela sonya misteriosa?”
Já que o seu perfil estava totalmente incompleto, estaria interessada apenas em saber o “modus operandi” desta comunidade de viajantes?
Por que ela doaria seu precioso tempo, para ouvir um forasteiro brazuca? Como ela me achou?…
…
Na quinta-feira, acordo por volta das 10hs da manhã…
(Misa sendo Misa e mantendo em 100% a tradição de – até aquele momento – nunca ter conseguido acordar mais cedo, para desfrutar do café da manhã gratuito…)
Fato é que eu queria entrar na minha caixa de mensagens antes mesmo de escovar os dentes, porém, fiz como manda o protocolo…
Me dei conta de que a misteriosa Sonya tinha respondido e com uma velocidade impressionante, diga-se de passagem, já tinha marcado um passeio para apresentar-me a cidade, naquela tarde de quinta.
O local do encontro seria no entroncamento das ruas Junín com a Ingavi, ao lado da Plaza Murillo, que é a Praça Central de La Paz.
Estava maravilhado… e de botas, jeans e camiseta escura (e monocromática), fiquei esperando a Senhorita Sonya no horário combinado, debaixo da PLACA DE RUA de hoje, Calle Junín.
E assim estava escrito, naquela parede branca, que estava precisando de uma restauração urgente:
“Calle Junín.
Antiguamente Calle del Puesto de los Pescados – (CHALLWA – KHATU) En esta calle se ubicaban los indígenas llegados del lago para vender pescado, ya que en aquellos tiempos el mercado se lo hacia en la Plaza Principal y alrededores.
SIGLO: XVIII
ACTUAL: CALLE JUNIN”
Nos dias atuais, o nome da rua refere-se à Batalha de Junín, de 06 de agosto de 1824, fundamental para a Independência do Peru e da Grã-Colômbia.
…
Quando um carro cor de nada, velho, todo acabado e muito menor do que um Ford Ka (comum em alguns países Andinos) parou ao meu lado e a pessoa me disse duas vezes, em tom interrogativo:
“Misa? Misa?”
Tive a certeza de que era ela…
Sorri e entrei rapidamente no carro para não ser atropelado por um pombo (na Plaza Murillo, há 1 pombo por centímetro quadrado)…
Disse algo como: “Oi Sonya! Tudo bem?” e fui brevemente contestado!
Fiquei olhando para o interior daquele mini veículo, sem nenhuma pretensão, e ela disparou: “Que?? Esperava um Mercedes?”
“É apenas um meio eficiente de sair do ponto A e chegar ao ponto B.” – ella añadió.
(Isso me serviu de reflexão algum tempo depois…)
“Não! Achei seu carro de puta madre! (uma expressão castellana, porém, 100% da Espanha)” – emendei…
Ela não parecia tão amigável assim, como fora nas mensagens…
Depois de algum tempo conhecendo La Paz, ela se revelou extremamente chata e o que era para ser um encontro saudável entre um viajante e um local, logo se transformou em um desgosto insuportável…
Ela me alfinetou, por qual motivo eu falava como espanhóis e usava expressões e gírias típicas da metrópole, quando deveria falar como meus compatriotas, vizinhos e hermanos da América do Sul…
Retruquei dizendo que adorava o castelhano, porém, meus primeiros contatos com esta língua foram através de uma professora de Salamanca (Espanha)…
Logo depois, fiquei com uma espanhola e que tinha absorvido o jeito, as expressões e as gírias que ela e todos os amigos dela, falavam…
Disse ainda que tudo teria sido diferente se aquela minha primeira professora fosse Limeña (de Lima, no Peru) e se aquela minha ex-namorada fosse colombiana… porém, nem sempre as coisas são do jeito que a gente quer…
(Porra! Soldado caiu, mas caiu atirando)
Antes da nossa despedida (talvez para tentar ser legal, reverter o quadro e mitigar um pouco a sua chatice), ela perguntou como era o hostel onde estava hospedado…
Falei de tudo, porém, me policiando para não vomitar nenhuma locução espanhola…
De tudo o que eu falei, parece que ela tinha capturado, apenas a parte do quadro famoso…
Usou um palavrão que não cabe aqui, para voltar com sua rudeza inoportuna e me dizer que eu não sabia nem o que era um Van Gogh…
Um pouco puto, disse que após visitar a “The National Gallery”, em Londres, tinha compreendido a característica do pintor holandês, porém, após conhecer o Museu dele em Amsterdam e se deparar com as mais diferentes pinturas, que não concebiam seu estilo principal, fiquei confuso…
Pude respirar “aire libre” novamente apenas quando ela me deixou na porta do hostel… e que alívio foi isso…
O dia desagradável foi recompensado pela noite genial e descontraída com meus novos colegas hippies argentinos…
Para reparar o dano causado do dia anterior, o passeio com a Yoshi, na sexta-feira, fora excelente!
Como prometido, ela me levou para conhecer o mirador Killi Killi, que está a 3.685 m de altitude, em plena La Paz…
Me explicou ainda o formato de caldeirão da cidade e terminamos o passeio em uma sorveteria diferente, um pouco afastada da área central…
Tudo correu muito bem…
Por meio de um amigo e de uma outra agência, conseguiu ainda me encaixar naquele passeio de bike, para percorrer “a estrada mais perigosa do mundo” na segunda-feira vindoura e me deu dicas muito valiosas a respeito da cidade…
Wow… 100% recomendada!!
Antes mesmo de entrar no hostel para guardar minha câmera, meus amigos argentinos me sequestraram até o quarto compartilhado deles, para me mostrar um tesouro…
Estava pensando em mais miçangas ou novos docinhos de dulce de leche argentino, quando um deles acaba sacando (de uma mochila de couro, do tipo hippie no mais alto grau) uma garrafa de Fernet…
Logo em seguida, declararam que todos iríamos salir de fiesta!!
Era como se tivessem ganhando na Loteria…
Nunca vi tanta felicidade por uma simples garrafa de bebida alcoólica!
Fernet + Coca + Boliche (palavra hermana usada para apelidar festas, casas noturnas e/ou baladas)
Aquela noite foi genial…
Chegamos no hostel por volta das 5h30 da manhã de sábado…
Todos borrachos (bêbados)…
Acordei cerca das 13h30…
Já com um certo nível de consciência, me desloquei até o computador, pensando em escrever uma referência mais que positiva para a encantadora Yoshi, mas sou tomado por uma fúria quando vejo duas mensagens indesejadas, de uma tal de Sonya…
A primeira mensagem poderia ser traduzida como um pedido formal de desculpas, pelo comportamento desagradável por parte dela, na quinta.
Notei que a segunda mensagem tinha chegado em apenas 04 minutos depois da primeira e além de reforçar o pedido de desculpas, implorava por mais um reencontro…
Meus caros, sabemos que não há uma segunda oportunidade para causar uma primeira boa impressão…
Não queria ver novamente aquela mulher que parecia ser boa gente no princípio, mas que acabou se revelando uma escrota no final.
Comecei digitando uma mensagem com um pensamento de que estava tudo bem, mas que teria outros planos para aquele sábado, porém, meus dedos me traíram e resolvi acatar o pedido daquela mulher que só me jogou pedras…
Apenas acalmei meu pensamento e me blindei com resiliência e estoicismo para enfrentar mais pedras, críticas e imposição de ideias…
Me confortou a mente, saber que poderia bolar uma desculpa e rapidamente voltar para mais uma noite de festa com Fernet + Coca + Boliche, com meus amigos hippies argentinos.
Quem sabe ela não estaria em um dia ruim, naquela quinta passada? Vá lá saber! Afinal, nem todos os dias são como flores na janela e sorvete no final da tarde…
Como diz uma música bastante conhecida por aqui, de que “todo mundo espera alguma coisa de um sábado à noite”, naquele sábado à noite, eu não esperava nada…
Na verdade, esperava pela senhorita Sonya, embaixo da mesma PLACA DE RUA, da Calle Junín, do outro dia…
Quando, de repente… desce de um ônibus colorido, comum e peculiar da Bolívia, uma jovem com um par de brincos diferentes…
– “Hoje você veio de Mercedes!”
Brinquei sem provocar, já pensando em alguma desculpa fajuta para me livrar dela o mais rápido possível e voltar para minha nova tripulação de hippies argentinos.
(Na Bolívia, a maioria dos ônibus coletivos são aqueles do tempo antigo, mas coloridos e dignos de fotos memoráveis. Quase todos são da marca Dodge, mas de vez em quando, surge um Nissan, um GMC ou até mesmo um Mercedes…)
Ela sorriu, olhou para o micro que tinha acabado de transportá-la com eficácia, do ponto A (provavelmente em algum ponto perto da sua casa) até o ponto B (embaixo da PLACA DE RUA da Calle Junín) e disse, com um sorriso meio amargo:
– “É verdade!”
“Pra mim, eles são todos iguais aqui. Nunca tinha reparado!” – concluiu tentando usar o gancho, como quebra-gelo.
Em seguida, perguntou se gostava de pizza e quis saber meus sabores preferidos…
“Calabresa e Presunto Parma”, foi a minha resposta curta, objetiva e padrão.
Então, com um ar de entusiasmo (totalmente diferente daquele outro dia), ela me conduziu até a uma pizzaria que estava abarrotada de gente…
Depois me pediu uma série de desculpas, afirmando que tinha acontecido algo muito (muito) ruim naquele outro dia (que não cabe mencionar aqui), mas que já estava tudo solucionado da melhor maneira possível…
Se sentiu uma escrota (ela mesma usou uma palavra ainda pior do que esta), por ter descontado toda aquela fúria, em uma pessoa que não merecia nada daquilo…
Implorou por pedidos de perdão como se eu fosse um togado da corte superior…
A pizza de calabresa estava um pouco forte e a conversa seguia um rumo muito agradável, quando perguntei por qual motivo ela tinha me oferecido um sofá.
Antes da sua resposta, fiquei pensando se estava conversando com a mesma pessoa daquela quinta-feira passada.
Como pode alguém fazer um brusco movimento de 180º em tão pouco tempo?
Tudo se encaixou perfeitamente quando ela me disse que tinha ganhado uma bolsa de estudos para fazer um mestrado em História da Arte, na ilustre Universidade de Coimbra, em Portugal…
Como viu pelo meu perfil (completo) que eu estava morando em Aveiro (também Portugal), pensou que seria uma boa, trocar algumas ideias sobre Portugal e também, quem sabe, garantir uma hospedagem na faixa, na cidade conhecida como a “Veneza Portuguesa”…
Já tinha concluído meu intercâmbio em Aveiro e já estava morando no Brasil há um par de meses, mas ainda não tinha atualizado meu novo endereço…
Ela não perdeu o interesse, mesmo quando soube que já não estava comendo “bacalhau com natas” e “ovos moles” em território Luso…
A conversa fluía incrivelmente e naquele momento já tinha esquecido totalmente dos meus amigos hippies argentinos e da noite de fiesta…
Antes de partir para minha saborosa pizza de presunto parma, pergunto uma coisa, mas ela acaba entendendo outra…
O que nos rendeu uma bela de uma risada.
Momento em que percebo seus dentes brancos e bem alinhados, tão incomuns nos seus compatriotas bolivianos…
Mais importante do que isso, foi perceber que, além de não ser a mesma pessoa daquele outro dia, ela tinha “baixado a guarda”…
Mais importante ainda, foi ter a certeza de que ela tinha deixado a intransponível armadura (e suas pedras) em algum lugar distante…
Isso se deu quando reparei a sua pupila agigantar e roubar todo aquele terreno que poucos dias antes pertencia a uma feroz íris verde, ainda mais anômala nos seus compatriotas bolivianos…
O clima já era outro quando ela quis saber como foi o meu regresso…
“Olha Sonya…” – comecei…
“Logo quando cheguei em Aveiro, achei tudo muito bonito”.
“Era tudo mais fácil, organizado e as coisas fluíam super bem”…
“É impressionante como acostumamos tão rápido ao que é bom”…
“Podia andar tranquilamente e sem nenhuma preocupação até mesmo quando sacava todo o dinheiro do mês, em algum caixa eletrônico perdido em uma rua qualquer da cidade”…
– “Aqui tem que tomar um certo cuidado ao fazer isso”, ela interrompeu…
– “No Brasil também não é diferente e temos que tomar o maior cuidado até mesmo quando vamos fazer um saque simples para pagar algum boleto barato”…
(lembrem-se de que o mundo ainda era físico e o meu celular ainda era aquele do jogo da cobrinha…)
(É a mesma coisa que perguntar para os mais jovens, qual a relação entre uma caneta e uma fita k7. Enfim…)
“Temos até um nome pra isso, acredita? Tentando explicar e achar um termo apropriado para “saidinha de banco” – arrematei.
“Não é um lugar trepidante como Londres ou Budapeste, mas é um lugar perfeito para viver com tranquilidade, como quem desfruta de uma aposentadoria serena”, – continuei.
“A vida era muito boa e a facilidade impressionante e se realmente quisesse um pouco de agito, bastava pegar um comboio até o Porto e depois um Ryanair para qualquer destino quente da Europa, por um preço inacreditável”…
“Porém, você só consegue perceber a diferença quando volta”…
“O baque é muito grande”…
“Logo quando cheguei ao Brasil, percebi que havia um buraco gigante no asfalto a cada 10 metros (não me lembrava de ter encontrado um único buraco sequer quando aluguei um carro e rodei, junto com uns amigos, mais de 3.000 km por lá…)
“Antes de chegar em casa e matar a saudade da família (e também daquele aguardado churrasco), um humilde de um carroceiro fez uma perigosa mudança de pista e acabou voando papelão para tudo que é lado”…
“Pensei: Meu Deus! Onde estou? Que lugar é esse?”…
“Não havia água nem para escovar os dentes naquele dia, pois o governo tinha acabado de adotar políticas de racionamento…
“Quando soube que minha irmã tinha acabado de ser assaltada, quis chorar com todas as minhas forças e voltar o mais rápido possível para aquele guichê da TAP e implorar, pelo amor de Deus, uma passagem só de ida para Portugal, o mais rápido possível”…
“Depois me dei conta novamente de coisas que outrora tinha esquecido como: burocracia, a dificuldade (e a carestia) de ir do ponto A ao ponto B, enquanto notícias de corrupção bombardeavam meus ouvidos…”
“Acho que tive uma síndrome chamada de depressão pós-intercâmbio ou depressão pós-Europa…”
“Meus amigos também tiveram essa síndrome…”
“Desejo que você não passe por isso”, – acrescentei.
Ela repousou a enorme fatia de pizza no prato e disse algo como:
“Caramba Misa!”
“Nem quero pensar nisso quando acabar o meu período em Coimbra.”
Sorri e apenas disse que ela teria ainda bastante tempo para desfrutar de vinhos, azeite, pasteis de Belém, queima das fitas (a melhor festa de Coimbra), bacalhau com natas, arroz de pato e uma infinidade de outras coisas até o findo da bolsa de estudos, porém, adverti que tudo tem um início, um meio e um fim. Portanto, seria preciso aproveitar cada segundo com total intensidade…
Como já havíamos acabado nossa refeição, ela perguntou:
– “Misa, você já tomou cerveja feita de Coca?”
(Feita com folhas de coca para amenizar o “mal da altitude”)
Antes mesmo de escutar a minha resposta, ela continuou…
– “O que você acha de irmos até um bar que está aqui ao lado, para tomarmos umas cervejas de coca?
– “Perfeito”, eu disse.
Quando me atrevi a pegar minha carteira para pagar a conta, senti uma mão de seda macia e caliente frustrando minha infrutífera tentativa…
– “Você é meu convidado hoje, por favor…”
– “Então o bar é por minha conta”, foi a minha rápida reação…
Antes de andar uma quadra pelas estreitas calles de La Paz, sugeri que ela observasse o quanto a Lua estava radiante…
– “UAU… como pode ser tão linda?”.
Apostaria todas as minhas fichas, com a certeza absoluta, de que não era a mesma pessoa daquela quinta-feira…
Após alguns segundos admirando a beleza da Lua, ela continuou…
– “Misa, sei que fui uma completa idiota e uma grande imbecil contigo no nosso primeiro encontro…”
“Nem sei como te pedir desculpas, pois entendo agora que foi como ter despejado lixo em um jardim bem cuidado…”
“Me sinto mal por isso, mas prometo que isso nunca mais vai acontecer”…
“Porém, como uma expert em História da Arte, me sinto na obrigação de ajudar pessoas que não sabem a diferença entre um Van Gogh e um Monet”…
“O que você acha de deixarmos as cervejas de Coca para amanhã e irmos direto ao quarto do Poderoso Chefão, para eu te dar uma aula inesquecível de História da Arte?”
Old Misa
P.S. 1: Pensando em evitar possíveis conflitos internacionais, o nome Sonya foi trocado…
Thiago
maio 19, 2018 - 11:58 am
Que história chegadim!! Top d+! A cada post uma surpresa. Como disse antes, você tem que reunir todas as histórias e colocar em um livro. Show!!!!
oldmisa
maio 28, 2018 - 9:03 pm
Valeu Thiagão!!
Obrigado meu velho!!
Gostei do: “A cada post uma surpresa”…
rsrs… muito bom!!
Abraço